quarta-feira, 23 de março de 2016

Pessoas, Gente, Malta e outros



Nesta vida aos quadradinhos, todos assistimos a situações que nos metem uma careta na face.
Sendo eu um observador de situações, sistematizo aqui apenas três delas, não são as piores nem as melhores, são apenas três entre muitas. Como já vai sendo hábito, vou usar o sistema de pontos que como convém, vai começar pelo princípio.

Primeiro

Pessoas que andam aos "esses" na rua.

Antes de começar a cascar nestes indivíduos, faço uma ressalva:

Eu sou um tipo grande. Nada como o Alexandre*, ou o Pedro*, mas literalmente grande. A minha cabeça está um bocadinho mais longe do centro da terra do que a das pessoas que vão ao meu lado. A proporcionalidade implica com as minhas pernas e o resultado é que os meus passos são maiores que os dos outros, que para me acompanharem a andar, normalmente correm.

Ressalva feita e concluindo, eu ando depressa e às vezes, à pressa.
Nos meus trajetos diários enquanto pedestre, encontro obstáculos imóveis que evito e contorno com mestria, nem sempre consigo fazer o mesmo, com os obstáculos móveis que usualmente têm uma cabeça humana no topo. Alguns desses companheiros de viagem, deviam tirar uma licença especial para circular no passeio - uma coisa mesmo tipo carta de condução, mas para peões. (repararam que usei a palavra "tipo", como deve ser?) Essas cabeças andantes, acham que ao deslocar-se em padrões aleatórios, irão eventualmente conseguir chegar ao seu destino.
Muitas vezes, lá vou eu, à minha velocidade, vejo um dos tais andantes quânticos e começo os meus cálculos, observando as seguintes propriedades:

a) se o dito for a olhar para cima, significa que anda à procura de coisas que podem cair, de certeza que vai parar a qualquer momento, ou alterar radicalmente a direção do seu movimento.

b) se o sujeito for a andar de telefone na mão, vai ziguezaguear até embater contra alguém, portanto eu, que venho de trás, sigo os seus zês, e no último momento, avanço na direção que eu pretendia de início (por vezes esta técnica falha, porque depende em grande medida, do assunto que o meu obstáculo tem na mensagem do telefone e que é um dado que não possuo).

c) se por azar da humanidade, este espécime estiver a usar o telefone com ambas as mãos, eu torno-me religioso durante a operação de ultrapassagem, clamo aos céus e às suas almas, porque está um desastre eminente iminente. O individuo poderá ter reações totalmente imprevisíveis. Já os vi pararem de subir as escadas e atravessarem ruas com o sinal vermelho, enquanto os carros se deslocam perpendicularmente à direção do mencionado portador do telemóvel.

O que proponho é que existam nos passeios, em todos os passeios com mais de cinquenta centímetros de largura, vários traços contínuos coloridos, para que cada pessoa use apenas um deles no seu trajeto, pisando-o obrigatoriamente a cada passo. O fulano sai de casa, escolhe uma cor, e vai sempre a pisar essa cor até chegar onde quer. Como é óbvio, isto falharia se se andasse com o telemóvel nas mãos, portanto os aparelhos com ecrã estariam também proibidos.

Segundo

Pessoas que saem de sítios e ficam paradas à porta.

Eu faço aqui um apelo à humanidade em geral: Por favor, quando sair de um sítio, não fique parado a tapar a porta por onde acabou de sair.

É só isto! É simples. Uma pessoa sai de um sítio e não pára à porta, sai mesmo.
Há lugares onde ficar à porta não tem importância, como saídas de centros comerciais que são tipicamente largas e estádios de futebol ou concertos onde uma pessoa é empurrada pela multidão e mesmo que queira, não consegue parar à porta. Mas quando vamos a um McDonald's de zona histórica, com portinhas pequeninas, e alguém que acabou de se refastelar com essa iguaria da cozinha norte-americana, fica parado à porta, seja a ver os pombos, a falar com a namorada ao telefone, dizendo "Querida, acabei de chegar a casa", ou apenas a continuar a conversa que estava a ter lá dentro, mais ninguém sai normalmente do referido estabelecimento, ficando remetido a uma prisão que não merece. Para sair ou teremos de aplicar violência, empurrando de forma eficaz a(s) pessoa(s) que impedem a saída, ou ficamos lá dentro! Falar não funciona, pedir delicadamente não funciona, gestos também não - acreditem já me aconteceu, tive de empurrar a velha.

Para terminar este segundo ponto, há um lugar em que esta questão toma proporções épicas.
Refiro-me ao passeio em frente à pastelaria Versailles no Saldanha, em Lisboa. A porta é das pequeninas, está mesmo ao lado da saída do metro, tem uma esplanade** coberta e aquecida, mesmo em frente à porta e... é no Saldanha.
Sobra um metro e meio de largura de passeio para passar toda a gente, e pasme-se: As pessoas saem da pastelaria e ficam à porta! Não passa quem vem do metro, quem se desloca na Avenida da República, nem quem quer entrar ou sair da referia pastelaria, e porquê? Porque uma senhora ou um senhor de idade e posses avançadas, fica a ver quem está na referida esplanade** ou a ligar ao chauffeur*** quando sai, após comer o seu pastelinho. E sim, aqui também já tive de empurrar a velha, só que esta tinha ao colo, o que parecia ser um cão, mas com vinte centímetros de comprimento.

Terceiro

Pessoas que não se antecipam a acontecimentos inevitáveis.

Este último ponto é mais complicado de explicar.
Talvez com um exemplo, consiga. Você está na fila do supermercado porque foi comprar biscoitos para o gato. À sua frente está o pedreiro da obra ao lado que foi buscar um folhado quentinho e um compal e está a ser atendida uma senhora que comprou três pares de collants**** pelo preço de duas, e um iogurte líquido de marca branca. A diligente funcionária da caixa, pergunta à cliente:
 - Precisa de um saco?
Ao que a senhora responde:
 - Não, minha filha, eu levo isto na minha mala.
Ouve-se o piiii das collants**** que deslizam pela rampa da caixa abaixo, seguido pelo piiii do iogurte cuja garrafinha rebola despachada, no mesmo sentido.
 - A senhora deseja mais alguma coisa? Quer contribuinte na fatura?
Pergunta a caixeira.
 - Credo! não quero nada com as finanças e por agora levo só isto.
Responde quase indignada a referida cliente. A dedicada empregada da caixa carrega no botãozinho para terminar a venda e diz, quase a cantar:
 - São quatro euros e vinte e cinco cêntimos.
Por sorte, este valor é precisamente o mesmo que aparece no visor da caixa. A senhora da mala, abre a dita e procura calmamente a sua carteira; esta, elusiva como um lince, mistura-se com todas as coisas que uma mala de uma senhora tem. Após uma caçada exaustiva e minuciosa, a carteira lá aparece na mão da cliente. Ouve-se um suspiro em coro na fila. A carteira em questão, agora gloriosamente aberta, é um acervo de talões e outros papelinhos, onde também podemos vislumbrar algumas notas europeias. Faço notar que, tal como a maior parte destas carteiras, também esta tem fotografias de netos, filhos e outras pessoas, a fazer peso na aba interior - e são tão lindos...
Segue-se o ritual de encontrar uma nota para pagar. Como a conta não chegava aos cinco euros, a senhora procura uma deste valor, e como é óbvio, não encontra. Aparecem notas de dez euros, até uma de cinquenta, mas de cinco, nada.
Está a hora da cliente puxar pela arma secreta da carteira - o porta-moedas!
Ora então, vamos lá facilitar o troco à menina da caixa - pensou a dona da carteira - procura-se quatro euros e vinte e cinco e fica tudo resolvido num instante. O pedreiro já está com falta de ar, e você tem a perna direita dormente, para não mencionar o seu gato que está prestes a morrer faminto.
  - Esta moeda é de quanto? Isto parecem-me cinquenta cêntimos...
Pergunta a senhora à rapariguinha que responde, laconicamente e amarelando o sorriso:
- São vinte.
- Olhe, parecia mesmo uma de cinquenta!
Responde a protagonista, voltando a colocar a moeda no porta-moedas, aumentando assim a entropia daquele sistema.
Isto não tem fim à vista, o pedreiro nunca mais lancha, você nunca mais acaba de ler isto e sinceramente já estou com pena do gato e nem sequer o conheço. Portanto para resumir, quando a senhora lá conseguiu dar os quatro euros e vinte e cinco cêntimos, a mocinha da caixa distribuiu-os pelos compartimentos respectivos, enquanto a senhora arrumava a carteira na mala. Entretanto, o talão silenciosamente impresso ficou pronto, e a menina da caixa entregou-o à senhora.
Sim, adivinharam!
A carteira voltou a ser pesquisada dentro da mala para que o talão pudesse ter o destino de todos os outros registos, guardados junto de cartões de visita, manuscritos no verso, numa caligrafia inexperiente.
Por esta altura já devem ter percebido a ideia, vamos às conclusões: o pedreiro acabou por lanchar e o seu gato não perdeu uma preciosa vida.
O que quero dizer é:
Quando uma pessoa vai para a fila, já sabe que é preciso pagar a conta e em seguida levar as compras dali para fora!

Toda a gente sabe isto, então porque não se preparam antes do acontecimento inevitável?
Quando uma pessoa vai para entrar no metro, já sabe que tem de passar os portais automáticos com o cartão, então porque é que há pessoas que só tiram o cartão da mala quando já estão dentro da baía, a impedir toda a gente de seguir com a sua vidinha? (e já sabemos o que custa encontrar qualquer coisa numa mala de senhora, não é?)
Quando uma pessoa está na charcutaria do supermercado, tem a senha oitenta e três e está a ser atendido o feliz portador da senha setenta e seis, tem muito tempo para pensar no que vai comprar, em vez de estar a decidir apenas quando é chamado, essa decisão é inevitável.
Quando uma pessoa vai ao cinema e a sessão é às nove e meia da noite, é só chegar à sala às nove e vinte e cinco e não às nove e trinta e cinco, a incomodar toda a gente que chegou a horas, não custa nada, porque o início da sessão à hora marcada, é inevitável.

E é isto.

Banda sonora: Riverside - Discard your fear (se gostarem, está aqui o álbum inteiro - Love, fear and the time machine)

* Wikipédia
    Alexandre, O Grande
    Pedro, O Grande

** Esplanade - Esplanada em francês

*** Chauffeur - Motorista ou chófer em português

**** Collants - palavra francesa cujo significado, em português, é "Calças Justas"