sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Ainda é o que era


Eu vivo numa cidade muito antiga, no alto de um monte. E por muito antiga, quero dizer mesmo MUITO antiga, já o monte não é assim tão alto, eu durmo a cento e vinte metros do nível do mar, já contando com o primeiro andar.
Segundo a wikipédia e certos manuais escolares, há vestígios de ocupação humana no século VIII, a.C. Nessa altura ainda os povos não tinham nome, e as pessoas viviam em grupos espalhados pelo território. Agora, os povos já estão classificados mas ainda continuam a viver em grupos. Portanto, nestes perto de trinta séculos de cidade, quase nada mudou.

Uma construção humana
As pessoas ainda vivem em grupos, as suas necessidades são praticamente as mesmas, no entanto a paisagem e o modo de vida alterou-se de forma bem evidente.


Outra construção humana

Posto isto, e como o que me interessa mesmo é a forma como as massas cinzentas funcionam, vou começar apresentando a minha análise da coisa.

Em miúdos queremos brincar, em jovens namorar, em adultos criar e nutrir a nossa descendência. E é basicamente isto. O que acontece entre cada um destes degraus, a cada passo que damos, é que determina como atingimos cada um deles. Inevitavelmente o nosso caminho vai cruzar caminhos de outros, e é aqui que reside a grande diferença entre as diversas gerações de Homens - a forma como lidamos com estes conflitos ou colaborações, conforme for o caso.
Os ratos, só para citar um exemplo no reino animal, fazem a gestão destes momentos, quase sempre da mesma forma, entre gerações, ao longo dos milénios. Os humanos, por outro lado, modificam as suas atitudes perante estes cruzamentos de caminhos individuais, a cada geração. E é por isto que os humanos fabricam ratoeiras, e os ratos não fabricam homeneiras*.

Gosta de queijo?


Toda esta conversa, para introduzir o tema de hoje. Como não podia deixar de ser, é mais um quadradinho que observo, no meu dia-a-dia entre degraus - as tradições.

O argumento da tradição, não deixa avançar aquele processo que referi lá atrás. Se repetirmos as mesmas ações, perante as mesmas situações, o resultado será sempre o mesmo. Isto por si não levanta nenhuma questão se for precisamente isso que queiramos fazer. Se o padeiro da região fabricar o seu pão sempre com a mesma e exata receita, e o resultado for apreciado por todos, ele vai continuar a vender toda a produção e os seus clientes também ficaram satisfeitos, porque usufruem do pão que gostam. Faz sentido. E se um outro fabricante aparecer com uma receita diferente, mais apetecível? Como fica o nosso padeiro original? O que vai fazer para conseguir vender como vendia? Eu afirmo que terá de alterar a sua receita, ou os seus métodos.
Se, por outro lado, ele se mantiver fiel à tradição do seu avô, que passou para o seu pai e que tanto sucesso teve, vai ficar sem negócio e desaparecerá. Uma outra tradição, que não a dos seus antepassados, ficará instalada.

Isto está sempre a acontecer, porque como vivemos em grupos, os nossos caminhos cruzam-se, tocam-se, enrolam-se e é preciso tomar medidas para atingir o degrau seguinte, isto é - é preciso desimpedir o curso da nossa vida.
Continuando com o nosso amigo padeiro, ele poderia mudar a sua receita, mais um bocadinho disto ou daquilo, deixar cozer mais ou menos o pão, inventar um pão totalmente novo, com côdea removível ou com sabores exóticos, poderia ainda negociar com o seu concorrente (cujo caminho está, neste momento, entrelaçado ao dele) e juntarem esforços, ou poderia simplesmente alterar o negócio e começava a fabricar bolachas Maria. O que quero deixar bem claro é que se ele não fizer nada contra a tradição do fabrico do seu querido pão, o negócio vai ficar extinto.

Tradicional?

Como já devem ter reparado, isto dá para muitas páginas, porque quase ninguém gosta de mudar de hábitos (leia-se tradição) e muito poucos o fazem por vontade própria, tipicamente só acontece quando se torna evidente que não há outra forma ou... se forem obrigados pela lei.

Se olharmos à nossa volta vemos alterações destas a todo o instante, umas mudam-se sem grandes problemas, outras provocam a ira de multidões.
Para expor a minha questão de hoje, ainda falta desmontar uma confusão que anda às voltas em muitas cabeças e que é usada como argumento contra ímpetos renovadores destruidores de tradições.

Tradição não é o mesmo que História. E eu posso falar disso, piso um chão erodido de séculos, onde quem me antecedeu foi construindo e destruindo e tal como expliquei, muitas tradições desapareceram, outras foram criadas. As pedras que há por aqui, guardam esses movimentos, esses pontos de viragem. Vou dar um exemplo que demonstra a diferença entre História e Tradição. Os pelourinhos. Ninguém argumentará contra o facto de que um pelourinho é uma peça do património histórico, que se contam e recontam acontecimentos à volta dele, até faz parte do currículo escolar e damos por nós a explicar aos filhos para que servia. Os pelourinhos fazem parte da História, porque registam usos, costumes... tradições. Os registos ficam, as tradições inevitavelmente desaparecem, não me lembro de ver recentemente um larápio pendurado num pelourinho antes das chibatadas da ordem, nem de ouvir partes do código civil, recitadas pelo arauto do reino. A Tradição morre, a História regista essa passagem.

Um pelourinho - a história dele aqui

Agora o assunto principal.
Santarém está instalada num planalto. Parece que os meus antigos vizinhos também acharam que era um bom sítio para viver, tal como o meu avô achou vinte e tal séculos depois e todos eles foram desenvolvendo a coisa, devagarinho. Uma tradiçãozita espezinhada aqui, outra ali. Um hábito ligeiramente modificado hoje, outro amanhã, e a vida lá foi andando até ao estado atual. Os progressistas de cada época, foram beliscando as tradições, até as deixarem a definhar, cheias de nódoas negras. É esse o papel deles, os progressistas - criar tradições novas (desculpem o oximoro).

Há umas tradições vigentes na minha terra, e que há demasiado tempo desafiam a racionalidade. A primeira é o trânsito no centro da cidade. Há vinte e tal anos atrás, era presidente da câmara Ladislau Telles Botas, o assunto estava ao rubro. De um lado quem queria fechar o trânsito no centro da cidade, do outro quem o queria manter a circular. A decisão do município foi a politicamente correta. Fez-se um inquérito referendário aos lojistas do centro da cidade. Já passou muito tempo e não encontrei registos, mas sei que venceram os tradicionalistas, donos de lojas tradicionais, resumindo: venceu o comércio tradicional e o trânsito continuou como era hábito, a circular alegremente, à exeção de duas meia-ruas.

Na altura, eu pude ouvir uns e outros e o argumento da maioria dos lojistas era: "As pessoas de Santarém estão habituadas a dar uma voltinha de carro a ver as montras, e se fecharmos o trânsito deixam de vir."

Ainda hoje me arrepio com isto. Quantos artigos venderam eles a estas pessoas? Será que teriam pensado em implementar um sistema de "drive in"? Se uma pessoa for de carro, vê a montra durante quanto tempo? dois segundos?

Este fim de semana, fui eu dar uma voltinha pelo centro histórico, a pé, e notei que esta tradição ainda se mantém. Os peões têm de fugir dos carros, as mães sorridentes passeiam os filhos, nos carrinhos de bébé, ainda são forçadas a procurar as entradas das casas para se esconderem dos automóveis, que teimosa e tradicionalmente andam por ruas que foram feitas pelos nossos antepassados, para andar a pé. Não é de admirar, que a cidade esteja deserta, exetuando um ocasional veículo que observa montras com dísticos "trespassa-se" colados no vidro, e que nós, enquanto peões, prefiramos os centros comerciais, para gastarmos os nossos euros.

"You're doing it wrong!"

Bem sei que esta não é a única razão para a crise do comércio tradicional, mas é uma dor de alma ver ruas desertas, com lojas fechadas e mesmo assim ter de encolher a barriga, para deixar passar um carro que devia estar estacionado algures, enquanto os seus ocupantes tomavam um café ou uma bebida da moda, numa esplanada no centro da cidade.

Recentemente, tive a sorte de poder revisitar algumas cidades portuguesas (Chaves, Bragança, Mirandela, Castelo Branco, ...) e posso dizer que foi um scalabitano envergonhado e até um pouco invejoso, que andou por lá. Sim, vi muitas lojas fechadas, mas também vi ruas cheias de gente, que passeia com os filhos, ou fica calmamente nas esplanadas enquanto os miúdos saltitam aos gritinhos, nas pedras que os seus antigos vizinhos por lá deixaram.

As iniciativas de trazer gente para as ruas do centro histórico (algumas até bem interessantes) falham uma atrás da outra, pelo simples facto de que não é agradável andar na rua. Os utentes destas ruas históricas não conseguem andar de mão dada com as respectivas companhias, e se tiverem filhos, ou for um grupo de amigos, entra em ação o efeito "escuteiro" - faz-se uma fila indiana, para que os carritos passem, esperando que não nos espalmem os pés.

Resumo:
Querem evoluir? Ponham em causa a forma como fazem as coisas, que é o mesmo que dizer, as tradições.
Querem pessoas a passear no centro histórico? Tirem de lá os carros.

E é isto.

*Homeneira: Palavra inventada pelo autor.

Wikipédia:
  Pelourinho
  Oximoro
  Arauto

Banda sonora: Dream Theater - Brother can you hear me