terça-feira, 25 de agosto de 2015

O Border Collie


"Queres raspar uma?", perguntou uma senhora ao filho de mais ou menos oito anos. Sem esperar pela resposta, virou-se para a moça do balcão: "Vá lá, dê cá então outra de um euro".
O diabinho que reside na minha cabeça, farto de estar à espera devido às raspadelas da senhora, fez disparar todos os alarmes, gritando tão alto que a ela deve ter ouvido: "Que merda é esta!??, tás a dar uma raspadinha ao miúdo!?". Eu virei-me para o diabinho, disse-lhe que ele tinha razão, e desliguei os alarmes tentando racionalizar a coisa. Imediatamente, qual vidente, imaginei a vida do miúdo daqui a vinte anos, a fazer o mesmo a um provável filho e a perpetuar este ciclo de...atrevo-me a dizer, estupidez!

Estas pessoas são levadas por um impulso que desconhecem, aliado ao facto de não saberem fazer contas e portanto não posso, nem quero, dirigir a minha raiva só para elas. O problema é complexo, as motivações do jogador são primárias e muitas vezes com origem num desenvolvimento defeituoso, o que é criticável e certamente reprovável é que ISTO ESTÁ INSTITUCIONALIZADO!

Somos humanos e estamos num processo darwiniano de melhoramento, portanto temos falhas. Se um burlão, para aproveitar essas falhas, abrir um website fraudulento e sacar um ou dois milhões de euros a vender banha-da-cobra, a uns quantos mortais, deficientes desse tal gene, vai preso e a interpol não o vai largar até que o apanhe, como é que as instituições fazem exatamente o mesmo, saem impunes e ainda são elogiadas?

"As instituições, estão aqui para os cidadãos" uma bela frase em que acreditamos. Eu digo, "Estas instituições" são o Border Collie do maralhal. Muito giras, tal cachorrinho querido de três meses que, quando chega a adulto, faz toda a gestão do rebanho, mordendo aqui e ali para conseguir atingir o objectivo. Os indivíduos do conjunto, desconhecedores da natureza mandona do Collie, nem sentem as mordidelas e continuam a comer erva, como se fossem livres.

O argumento "É da Santa Casa da Misericórdia...portanto é para uma boa causa", é muitas vezes usado para desculpar a atitude agiota do jogo legal. Eu pergunto: santa quê?. Se há pessoas que acham que estão a dar um contributo à ação social solidária ou outra coisa qualquer semelhante, reparem: A tutela da SCML é do Ministério da Segurança Social. Os membros da Mesa, são nomeados em conjunto pelo Primeiro Ministro e o Ministro da Segurança Social. Os restantes órgãos consultivos e de fiscalização são nomeados, ora pelo governo, ora pelo "Provedor", de todos eles, há apenas um que é o representante da "Irmandade da Misericórdia e de São Roque" (seja lá o que isso for) e que faz parte do Conselho Institucional - um dos órgãos consultivos da SCML.

"Onde é que este gajo foi buscar esta informação? tá a mentir!" - afirmam vocês, crentes. Ao que eu respondo, fui ao website da SCML. Está lá tudinho. Oficial e com todas as letras. Como diz o outro, agora pensem: Se tem nome de santa, mas é um departamento governamental, é como se fosse o Ministério das Taxas Finanças, disfarçado de Border Colie com três meses. Não tenho qualquer raiva particular contra isto, mas em termos abstratos, a conversa é outra. A lógica é a seguinte: Uma vez que existe um rebanho para controlar que não é ciente da sua condição, e como fomos eleitos por eles, podemos arranjar aqui umas taxas massas, sem que eles notem.

Curiosamente, a lógica para esta conclusão também está escarrapachada no mesmo sítio. Vá a esta página de resumo e repare que, pelo menos quando eu escrevi isto, havia 25 edições de raspadinhas em atividade. Eu escolhi, o jogo 230 que se chama inequivocamente "O Ano da Cabra", apenas porque gostei do nome. Carreguei em "saiba mais" e apareceram os detalhes do jogo. Esperem. Eu escrevi "detalhes"? desculpem-me, os detalhes estão no link "Plano de prémios e regulamento", façam-me a vontade e usem o link, porque vão ver a verdade, em toda a sua glória!

No caso do jogo 230, foram emitidos 20.000.000 (vinte milhões de raspadinhas, duas vezes a população de Portugal!), como cada uma custa um eurito, é fácil verificar quando vale o bolo, tendo em conta que tipicamente, a edição de cada raspadinha se ESGOTA.
Agora vejam as contas que lá estão no site da SCML. Cinquenta e oito por cento do valor total emitido, vai para prémios - isto é - onze milhões e seiscentos mil euros são devolvidos aos jogadores, e os oito milhões e quatrocentos mil que sobram? vão para onde?
Os vinte e sete sortudos que podem ganhar dez mil euros, de certeza que não concordam comigo, mas provavelmente os outros dezanove milhões novecentos e noventa e nove mil, novecentos e setenta e três, concordarão. Reparei ainda que, mesmo aqui onde se mostram as contas, o editor fez um esforço para baralhar os dados e tentar apanhar mais algumas ovelhitas desprevenidas. Olhem bem para a frase mais destacada, que até tem um bordo à volta e está em letra negrito e destacada: "Probabilidade Média de Ganho 1 : 4,50". Isto quer dizer que, para cada quatro bilhetes e meio comprados, pode sair um prémio. Eu sublinho "pode". Como há, neste caso, 2.700.000 bilhetes com um euro de prémio, para 27 com dez mil euros, está-se mesmo a ver o que vai sair como prémio mais vezes.
Este sistema alicia o jogador a manter a "pica", porque vai ganhando, e o sistema interno de recompensas de cada viciado fica satisfeito, independentemente do valor do prémio.

A parte mais ignóbil disto, é que as pessoas que estão viciadas na raspadinha, são pessoas de fracos recursos, como é observável em qualquer quiosque, e que pensam que resolvem os seus problemas com a sorte. Acho que é dever do estado, pelo menos não estragar mais o que já está mau e explicar isto de forma clara e não, pelo contrário, fazer um jogo totalmente viciado, em que o emissor já sabe antecipadamente quanto vai ganhar, porque é ele o próprio que imprime os bilhetes. Já agora vou ser mauzinho e dar oportunidade ao diabinho de lá atrás. São 2.700.000 bilhetes, qual é a dificuldade em não imprimir os tais 27, para que nunca saiam? Não vai ser o júri dos concursos a impedir porque, segundo a lei, este júri verifica apenas os ficheiros informáticos de cada edição. <fazer agora uma expressão de surpresa> Isto levanta a pergunta: Como se garante que o produto que sai impresso, corresponde aos tais "ficheiros informáticos" verificados? Mais uma vez, é preciso acreditar.

Para cúmulo, se o valor do prémio for superior a cinco mil euros, o estado diz: "Espera, porque além de te sacar dinheiro com o jogo, ainda te vou sacar vinte por cento de imposto de selo se ganhares à grande". Vinte por cento, é um quinto! Lindo.

Qualquer dia ainda volto a este tema, falta falar dos outros jogos e das suas probabilidades de prémio - resumindo, da escassez de cérebros pensantes no rebanho.

E é isto.


p.s.
Para vosso deleite, podem consultar aqui os relatórios e contas das atividades da SCML
...e depois experimentem a ligar para lá, perguntando quanto custa internar um idoso num lar ou uma criança num infantário.

Maralhal - Priberan

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